quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

O pedinte do semáforo e eu


Durante muito tempo (anos?), um homem - sempre o mesmo - pedia dinheiro aos condutores que paravam naquele semáforo. Estava lá todas as manhãs, quando eu ali passava, de carro, a caminho do trabalho. Às vezes vendia o Borda d'Água, outras vezes tinha algumas flores na mão, em dezembro vendia gorros de Pai Natal.
 Em certos dias, parecia zangado com o mundo e vociferava, para ninguém em particular, enquanto circulava por entre os carros. Nessas ocasiões, parecia indiferente às esmolas, como se só por acaso estivesse ali, no meio da estrada, meio perdido e obviamente perturbado.
Depois desapareceu. Não reparei logo, mas a dada altura apercebi-me da sua ausência. E algumas vezes, ao parar ali, lembrei-me dele perguntei-me por onde andaria, o que lhe teria acontecido, se teria sido ajudado, se teria conseguido ter uma vida mais digna, ou se lhe teria acontecido alguma desgraça ainda maior do que a miséria em que já vivia. Há pouco tempo, até constatei que ainda era capaz de me recordar da fisionomia do homem, que me inspirava algum receio, mas também compaixão.
Ontem, fiquei aparvalhada ao vê-lo de novo, no mesmo sítio, muito mais corpulento (quase irreconhecível, à primeira vista, mas o rosto não enganava), a vender cravos. Tive uma reação espontânea incontrolável, da qual depois me envergonhei: abri o vidro e cumprimentei-o, assim que ele se dirigiu para junto da minha janela. Perguntei-lhe se estava bem e desejei-lhe felicidades, entregando-lhe 1 euro e recusando a flor. Ele sorriu, timidamente, sem responder. Parecia grato, embora o facto de não ter palavras para me dizer pudesse significar muita coisa diferente.
Quando o semáforo passou a verde, arranquei, sentindo-me ridícula por ter conversado com o homem como se ele fosse um velho conhecido, quando antes nunca lhe tinha dirigido a palavra. Agi por impulso, sem pensar. Porquê? Porque me deixei conduzir pela surpresa, pela emoção, por um certo agrado/alívio, ao saber que ele estava vivo e de aspeto saudável.
Não sei o que pensar disto. Ajudas-me, Dulce? Admiro tanto a tua lucidez, sensibilidade e inteligência... Talvez me possas dar aqui uma luz que me permita tirar uma conclusão!



quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O elefante terapêutico



Só.
Solitária.
Por opção, por gosto, por necessidade.
Não é de agora, é de longe. Em miúda, dias enfiada no quarto, a escrever histórias e a desenhar. Em adulta, dias enfiada no gabinete, a trabalhar e a escrever, como se nada mais importasse. Como se...
Mas a vida é mais do que aquilo que se passa cá dentro. O interior ressente-se, claro, da falta de contacto com os outros. E em certos momentos, naturalmente, sinto a súbita consciência de que, mesmo sendo uma escolha, o isolamento acaba por se converter em solidão.
Sabe bem a tranquilidade de poder fazer o que quero e gosto, ao meu ritmo, sem interferências nem interrupções, não há dúvida. Mas o silêncio também perturba e a falta de comunicação com os outros acaba por nos tolher a alma. Mais tarde ou mais cedo, a leveza de estarmos sossegados no nosso cantinho começa a pesar. Como se tivéssemos fugido do mundo para uma praia paradisíaca, adormecido tranquilamente e, ao acordar, percebido que ficámos presos numa ilha deserta, irremediavelmente condenados à dureza do exílio.
Por isso, quando há pessoas e momentos que nos fazem sentir o afago e o apego do contacto significativo com os outros, o nosso coração, empedernido pela solidão, exulta. Felizmente, o músculo não atrofiou por completo, ainda é capaz de se deixar embevecer por uma alegria doce e revigorante, que nos recorda de que termos quem nos desassossegue é mais do que reconfortante: é essencial.
Foi isso que senti hoje, quando me vi transportada do meu solitário gabinete para a sala de artes plásticas, onde havia uma inusitada emergência: era preciso refazer um elefante vermelho que fora criado para um cenário e tinha ficado destruído durante o processo de secagem. Rapidamente, metemos mãos à obra: com cartão, vários x-atos que se foram partindo no processo (o mal do barato que sai caro...), boa disposição e tinta qb, que espalhámos com "espátulas" de cartão, o segundo elefante ficou pronto em poucos minutos.
Que satisfação vê-lo nascer, tomar forma e ganhar cor, graças à enérgica perícia do Leo, enquanto a Fatucha, sempre sorridente e graciosa, fez uma intervenção terapêutica numa libélula que também tinha sofrido as agruras de uma secagem acidentada.
Grata a estes dois colegas, acabei por sair da sala emocionada, com este pequeno-nada tão simples, mas tão reconfortante. E ainda me agradeceram pela ajuda!
Eu é que agradeço, por me terem proporcionado esta experiência de calor num dia frio que, assim, deixou de ser igual aos outros. Eu é que vos agradeço.

domingo, 6 de janeiro de 2019

O anjo





Sentia-me profundamente triste, não interessa porquê. E fiquei no carro, no parque de estacionamento do centro comercial, enquanto ele e os miúdos foram fazer uma compra. Tinha de aproveitar aqueles minutos para extravasar a tristeza em estado líquido. Às vezes preciso mesmo disso, o que hei de fazer? Desde pequena, recordo-me de me isolar para poder viver intensamente toda a melancolia que inexplicavelmente se apoderava de mim.

Primeiro, deixei que as lágrimas se soltassem, suaves e ligeiras, desanuviando a tensão de forma contida. Mas não era apenas tensão... Havia que libertar dores enclausuradas há demasiado tempo e abrir espaço para se manifestar uma frustração profunda e mal disfarçada no quotidiano. Tinha de aproveitar o momento para me permitir um alívio que durasse até à oportunidade seguinte para abrir a torneira.
Então, chorei copiosamente, sem restrições. Só tinha uns minutos. Depois seria preciso esconder a cara, falar normalmente, fingir que estava bem. Mas aquele era o meu momento. E que alívio senti, que estranha felicidade enviesada, transtornada, como se deitasse cá para fora, finalmente, o pus nojento de uma borbulha gigante.

Então, ela apareceu.
Passou bem perto do nosso carro, do meu lado, olhou para mim num relance, e esse brevíssimo instante foi suficiente para perceber que eu estava a chorar. Uns segundos depois, vejo-a aparecer novamente, agora a olhar fixamente para mim. Deve ter perguntado se eu estava bem, se precisava de ajuda, mas eu não a ouvi. Parou junto à porta do carro e ali ficou, à espera que eu reagisse.
Insistiu. Bateu no vidro. Simpática, pensei. Que azar, ter passado por aqui uma mulher simpática. Amorosa, mesmo. Mas agora deixe-me em paz, sim? Não tenho muito tempo para poder chorar, está a ver?
Não, ela não estava a ver. Queria ter a certeza de que podia ir embora descansada. Estava preocupada. Não era azar, era sorte. Eu estava cheia de sorte, era preciso reconhecer isso.
Tapei a cara com o cachecol e continuei a chorar. Agora estava comovida, já nem era a tristeza. Quem era aquela mulher, aquele anjo da guarda, e a que propósito é que tinha aparecido ali naquele momento, para me mostrar que não estou só, que há quem se preocupe, nem que seja uma pessoa estranha que por um incrível acaso (talvez os acasos não existam, de facto), passou por mim na hora exata em que eu precisava, apesar de não querer?
Não arredou pé. A certa altura, mostrou-me um distintivo. Seria agente da Polícia? Oh, meu Deus!
Voltou a bater no vidro. Era, afinal, uma autoridade... Teria eu de obedecer? Entretanto, o tempo estava a chegar ao fim. Eles iriam aparecer daí a uns minutos, talvez apenas segundos. Era preciso pôr fim àquela situação.
Abri a janela e disse-lhe que estava bem, que não se preocupasse, que tinha a família a chegar e que eu era uma pessoa com muita sorte. Agradeci-lhe e assegurei-a de que poderia ir embora descansada.
Ela sorriu. Era óbvio que eu não estava bem. Queria ajudar. Insistiu em dar-me o seu contacto, para eu lhe poder ligar, caso precisasse. Talvez tivesse pensado que eu era vítima de violência doméstica... Achei injusto retê-la ali, ter a sua atenção, quando eu tinha tanta sorte na vida, tantas pessoas a amarem-me, e havia tanta gente a precisar a sério de ajuda. Que equívoco tremendo! Eu não merecia... ela não merecia.
 Saí do carro quando os vi a aparecer, descendo a escada rolante. Segui-a até ao carro dela, que estava perto. Ela foi buscar um pequeno bloco de notas e uma caneta e escreveu o seu nome e número de telemóvel. «É o meu trabalho», disse-me, quando lhe agradeci. «Lido com pessoas assim todos os dias».
A solidariedade era, portanto, a sua profissão. E a sua vocação também, não tenho dúvidas.
Perguntei-lhe se tinha Facebook e prometi que, mais tarde, lhe enviaria uma mensagem, para que soubesse que eu estava bem. Paciente e amorosa, abriu o Facebook no telemóvel e mostrou-me o perfil dela, para que eu a reconhecesse.

Despedimo-nos quando eles já tinham voltado e entrado para o carro, depois de terem olhado com um ar curioso e vagamente preocupado para nós.
Quem era? - perguntaram-me, quando me sentei. «Uma ex-aluna minha», disse eu. «Quem diria! A Ana Luísa! Que giro voltar a encontrá-la, ao fim destes anos todos...!»






sábado, 14 de outubro de 2017

"Isso é consideração a mais"

Foi o que me disse uma pessoa, a propósito de eu me ter desculpado, via Facebook, por não lhe ter dado atenção suficiente numa conversa que tivemos antes e que foi interrompida quando alguém veio falar comigo.
A minha primeira reação foi pensar que era falta de autoestima, de segurança, de noção do valor próprio. Senti um misto de pena, indignação, identificação, e vontade de contrariar aquela ideia. Mas não fiz nada. Absolutamente nada. Continuámos a conversar, retomando o fio que fora interrompido na ocasião anterior. Mas depois de ter voltado para casa, pensei para comigo: «Não existe tal coisa. Nunca se pode ter "consideração a mais" por alguém. Essa pessoa é que pode não ser capaz de aceitar toda a consideração que lhe damos.»
Mas aquilo ficou a remoer cá dentro. E depois vi as coisas de forma diferente. Pareceu-me que, afinal, a consideração "a mais" que eu tinha demonstrado podia mesmo ter sido excessiva, despropositada, abusiva ou se calhar invasiva.
Atiro-me de cabeça, é o costume. Desde que me lembro que sou assim. Não sei ser razoável, agir de forma sensata, de acordo com as circunstâncias e o grau de familiaridade ou falta dela. De repente, dá-me vontade de mergulhar na intimidade com quem não a tenho, de partilhar tudo o que sou com quem só quer saber uma parte, de me despir junto de quem prefere ver-me vestida (em sentido metafórico, sim?).
Desmesuradamente, desmedidamente, despropositadamente, atabalhoadamente. Sou eu a ser. Por vezes a menos, mas sobretudo a mais.


segunda-feira, 31 de julho de 2017

O que é o sucesso

Sucesso não é fama nem dinheiro.
É conseguirmos atingir objetivos dos quais nos podemos orgulhar.


sábado, 17 de junho de 2017

"TLSO brace"... :(

O que é esta coisa estranha?
É uma ortótese e terá de ser usada pela minha filha de 14 anos a partir de agora e até aos seus 16...


domingo, 23 de abril de 2017

Não quero saber, por isso pergunto


- Então afinal quem é que ganhou o jogo ontem? - Pergunta-me a outra mãe que estava sentada ao pé de mim, frente ao parque infantil, enquanto os nossos filhos brincavam lá dentro.
- Não faço ideia - respondi eu. - Não ligo nada a futebol.
E ela sai-se com esta:
- Nem eu! Nada!

Ai não? Então a que propósito é que fez a pergunta?!


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Desvalorizar/Valorizar o que é negativo/positivo


Decididamente, tenho de deixar de ser tão pessimista.

Já me cansa a minha própria tendência para desvalorizar o que faço bem, para dar sempre ênfase ao que está mal, ao que podia ser melhor. O perfecionismo leva-me a ter medo de terminar seja o que for, porque no momento em que o processo acaba torna-se impossível melhorar o produto. Nos piores momentos, chega a ser contraproducente: tolhe-me a vontade de fazer seja o que for, porque parto do princípio de que não vou chegar aonde deveria. O derrotismo segreda-me, a propósito de quaisquer projetos, que não vale a pena tentar concretizá-los, porque há sempre quem faça melhor do que eu.
Este semestre letivo está a começar mal...
Mas lá estou eu a destacar o lado negativo, quando podia valorizar o que tem acontecido de bom.
Pronto, vou esforçar-me para reverter esta tendência. Reformulando:

Decididamente, vou ser mais otimista.

Estou entusiasmada para começar a valorizar o que faço bem, para dar menos importância ao que não ficou perfeito. O perfecionismo deve ser domado, para que conduza ao melhor resultado possível, sem levar ao receio de terminar aquilo que está a ser feito. Deve ser um estímulo, que me dê vontade de fazer mais e melhor. O otimismo dar-me-á alento, a propósito de quaisquer projetos, recordando-me de que vale sempre a pena tentar, porque ninguém fará por mim aquilo que eu imaginei fazer.
Este semestre letivo está a começar bem.
Vou destacar o lado positivo, valorizando tudo o que acontece de bom.
É isso. Vou esforçar-me para ampliar esta tendência.

Provas, para que vos quero?


É difícil descrever a sensação, essencialmente má, que me acometeu quando abri a caixa que continha as provas do meu novo livro.
Ao folhear as duzentas e tal páginas cheias de texto escrito por mim, senti um aperto cá dentro, um mal-estar esquisito, uma ansiedade que me deixou quase zonza. Apeteceu-me enfiar tudo dentro da caixa rapidamente, fugir, tudo menos olhar para aquela verborreia que um destes dias há de estar à venda por aí. Fui assolada por uma espécie de arrependimento misturado com pavor, tanto mais estranho quanto me é difícil - se não impossível - explicar o motivo de tal sentimento. Não queria eu tanto, tanto, escrever e publicar este livro? Não me deu tanto gosto escrevê-lo? Não me senti orgulhosa do resultado, quando o terminei? Então porquê, agora, esta renegação?

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Histórias para todos os gostos


Fui convidada para fornecer histórias escritas em inglês para o Quillr, uma aplicação que está a ser desenvolvida por um amigo de um amigo, na Índia. Acho a ideia excelente e estou muito entusiasmada com a perspetiva da minha colaboração! Será que vou finalmente dar uso a contos que escrevi há quinze anos?!

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Do livro que estou a ler



Um certo pastor americano bramiu um dia: «Para quê ensinar outras línguas na América se a Jesus bastou o Inglês?» Não creio que tenha ganho o céu.

Mário de Carvalho, Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Dúvida desta manhã


Não sei se passei grande parte da noite com uma insónia, se sonhei que tive uma insónia...

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Nós que atam e desatam


Hoje deixei o meu pequeno rebento num jardim de infância pela primeira vez. Apanhei-o distraído e fugi, depois de ter andado com ele de mão dada, à espera de uma oportunidade de me escapar sem que ele desse por isso. Não foi fácil, porque ele já é experiente nestas coisas. Foi para uma sala de acolhimento aos 5 meses e depois para uma creche com ano e meio. Desta vez, assim que lá entrou, agarrou-me a mão e só a largou no pátio, por causa de um triciclo. Abençoado triciclo!
Felizmente, o laço afetivo com a mãe ainda é tão forte, nesta idade, que ele se sente seguro e confiante, mesmo quando eu desapareço. A sua aparente independência na rua é reflexo disso mesmo: não se preocupa quando deixa de me ver, porque acredita que eu apareço sempre e quando for preciso. São nós muito fortes os que existem entre nós, mães, e os nossos filhos!
Mas é preciso desatar alguns, claro, em nome do crescimento e da autonomia, tal como fazem as mães raposas, quando arregalam os dentes aos filhos, para os expulsarem de vez do seu espaço, quando eles já são crescidos e podem tomar conta de si. Felizmente, ao contrário das raposas, nós continuamos a acompanhar e a ajudar os nossos pequeninos, durante todo o tempo que for preciso e quisermos ou pudermos.
No entanto, infelizmente, há outra diferença que nos distingue das raposas: elas não ficam com um nó na garganta quando se separam deles... esse é um nó que ata inoportunamente e custa a desatar.



quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Cogitações de pré-regresso


Amanhã volto ao trabalho e, pela primeira vez,  sinto-me ligeiramente nostálgica em relação ao tempo de férias que acabou. Este ano, ao contrário do que tem acontecido em anos anteriores, não me apetece voltar ao gabinete e passar os dias lá enfiada a "fazer as minhas coisas".
Depois destas semanas de praia e ar livre, em que me fui adaptando à vida em família e a um não ter nada que fazer que é sempre relativo e afinal me dá liberdade para decidir como quero aproveitar o tempo, sinto que vou ter dificuldade em readaptar-me à rotina de que eu tanto gostava.
O trabalho já não me sorri, a instituição muito menos. Deixou de ser um lugar onde me sinto bem-vinda e feliz. Por mais que eu goste do que lá faço, isso gerou no meu espírito uma certa angústia miudinha que me vai empapando o cérebro ao longo da semana. Não tenho vontade de viver dessa maneira, naturalmente, de sentir o que tantas outras pessoas sentem e eu me gabava de não saber o que era: passar a semana ansiando pela chegada de sexta-feira à noite.