terça-feira, 16 de outubro de 2012

À Espera de Moby Dick







    Se eu tivesse de escrever uma recensão sobre este romance ver-me-ia em sérias dificuldades. Felizmente, não é o caso e, apesar de querer deixar aqui algumas palavras que ajudem a divulgar um livro de que gostei bastante, posso dizer o que me apetecer, sem a obrigação de ser erudita, profissional ou original. Se a tivesse, bem podia desistir. Confesso que há vários dias que tento chegar a esse resultado sem sucesso, pelo que me rendi à evidência de que a única coisa que posso fazer é falar do que senti e pensei quando (re)li o livro À Espera de Moby Dick, de Nuno Amado.

    Séneca escreveu, para consolar a mãe, que «não pode haver lugar de desterro no mundo, uma vez que nada no mundo é estranho ao homem.» É uma epígrafe a que só sei dar a devida importância quando reabro o livro para ler o romance pela segunda vez. E aí está algo que quase toda a gente prescinde de fazer, mas que eu recomendo vivamente, lembrando as sábias palavras de um professor que tive no 12.º ano: «quando gosto de um livro, a primeira coisa que faço quando chego ao fim é começar a lê-lo outra vez.» Com as necessárias adaptações (no meu caso, a primeira coisa que fiz foi apagar a luz, porque já era tardíssimo), parece-me uma recomendação digna de obediência.
   Recomeço a minha leitura e detenho-me a cada passo com a adjectivação bem humorada, com as «metáforas ineptas» e o estilo quase britânico de um narrador ao mesmo tempo reservado e caloroso. Para quem escreve a um «melhor amigo» terapeuta, revela uma subtil argúcia na análise do carácter dos outros, através de gestos e modos de ser. Pareceria um protagonista extremamente lúcido e sensato, se não fossem alguns assomos mais dramáticos do seu discurso, que aliás enquadram de forma mais verosímil a personalidade de um potencial suicida. A nuvem negra de um acontecimento passado paira sempre sobre as suas palavras - ou, talvez melhor, sob as suas palavras, porque nas entrelinhas ecoa permanentemente o (outro) sentido possível, ora melancólico ora sarcástico, de tudo o que escreve este homem sem nome, mesmo aquilo que parece puramente descritivo, inócuo, ou mesmo jovial. No entanto, o pudor (ou a negação) que o impede de "esgravatar a ferida", o seu firme estoicismo e a tendência para a divagação filosófica fazem-me prosseguir a leitura com renovado prazer, apesar de saber que não vou encontrar respostas para todas as minhas questões. Este homem, vê-se, gosta de se perder na escrita. E não é o único, de entre as personagens do romance, relembro. Anseio por chegar a essa parte da história, a parte em que acabei por me comprazer em chorar lágrimas genuinamente kitsch.
    Começam entretanto as hilariantes cartas aos destinatários mais improváveis, que me fazem sorrir e invejar a imaginação vertiginosa do autor. A profissão do protagonista tinha de estar relacionada com a escrita... E eis que este auto-exilado, este «náufrago emocional», começa a sair do casulo e a dar-se com os vizinhos, descobrindo cada vez com mais curiosidade e não sem apreensão as idiossincrasias das vidas que o rodeiam. Divido-me entre ele e os outros, que também me intrigam a mim. A paisagem torna-se cada vez mais apelativa, à medida que vou conhecendo melhor os recantos de uma ilha que, tal como o romance, pertence a esse mundo límbico que fica entre o real e o fictício, mas também entre a imaginação do autor e a minha. Que bem que sabe esta cumplicidade e esta partilha, ainda para mais com relatos de viagens a lugares onde estive ou gostaria de estar...
  Muda continuamente o registo, o tempo, o espaço. Há cartas de outros remetentes, que se vão desfiar em paralelo com as do protagonista. Há outra história, muitas viagens, outros mistérios, destaca-se outro protagonista. E no entanto, a sua voz confunde-se com a do exilado. Será uma espécie de duplo, será ele mesmo, mas noutro tempo, noutro contexto, ou com outra sorte? Já sei, claro, a resposta essencial. Mas admito a hipótese de ter descurado pormenores que agora me podem permitir fazer uma leitura mais profunda... De repente, salta à vista o contraste: este segundo homem é «imensamente feliz». O primeiro foi atingido pela infelicidade. Será um paradoxo tanto mais interessante quanto passível de se inverter mais lá para a frente... mas não posso dizer mais nada, sob pena de cair no erro crasso cometido pelo crítico Ermenegildo Esteves. O resto vou saborear no silêncio privado da deliciosa «suspensão do eu» que este livro me oferece. E a este ponto não posso deixar de fazer minhas as seguintes palavras do autor: «Oscar Wildes me maldigam em ditos espirituosos, pois sinto que me estou a expressar de forma muito pobre.» Fica a ressalva: o livro merecia melhor.




1 comentário:

Fernando Vouga disse...

Li o livro em ambiente de férias tropicais, o que quer dizer fora do meu ambiente. Talvez por isso, contra o que costumo fazer quando um livro me interessa, não tomei notas nem destaquei com o marcador amarelo as passagens que mais me interessaram. Mas vou fazê-lo daqui a dias quando regressar a casa e às minhas velhas rotinas.

Por coincidência, uma amiga minha pediu-me há anos para digitalizar uma extensa série de cartas de amor (falhado) que um médico apaixonado escreveu à sua mãe. Isto nos primórdios do século passado. Com o pedido de digitalização, essa amiga sugeriu-me que eu aproveitasse as cartas para escrever um livro. Algo que não me entusiasmou na altura. Porém, esta obra de Nuno Amado fez-me repensar o assunto. Afinal, usar cartas em vez de capítulos é uma excelente ideia. Não será original da minha parte, mas não é, a meu ver, desonesto.