domingo, 6 de janeiro de 2019

O anjo





Sentia-me profundamente triste, não interessa porquê. E fiquei no carro, no parque de estacionamento do centro comercial, enquanto ele e os miúdos foram fazer uma compra. Tinha de aproveitar aqueles minutos para extravasar a tristeza em estado líquido. Às vezes preciso mesmo disso, o que hei de fazer? Desde pequena, recordo-me de me isolar para poder viver intensamente toda a melancolia que inexplicavelmente se apoderava de mim.

Primeiro, deixei que as lágrimas se soltassem, suaves e ligeiras, desanuviando a tensão de forma contida. Mas não era apenas tensão... Havia que libertar dores enclausuradas há demasiado tempo e abrir espaço para se manifestar uma frustração profunda e mal disfarçada no quotidiano. Tinha de aproveitar o momento para me permitir um alívio que durasse até à oportunidade seguinte para abrir a torneira.
Então, chorei copiosamente, sem restrições. Só tinha uns minutos. Depois seria preciso esconder a cara, falar normalmente, fingir que estava bem. Mas aquele era o meu momento. E que alívio senti, que estranha felicidade enviesada, transtornada, como se deitasse cá para fora, finalmente, o pus nojento de uma borbulha gigante.

Então, ela apareceu.
Passou bem perto do nosso carro, do meu lado, olhou para mim num relance, e esse brevíssimo instante foi suficiente para perceber que eu estava a chorar. Uns segundos depois, vejo-a aparecer novamente, agora a olhar fixamente para mim. Deve ter perguntado se eu estava bem, se precisava de ajuda, mas eu não a ouvi. Parou junto à porta do carro e ali ficou, à espera que eu reagisse.
Insistiu. Bateu no vidro. Simpática, pensei. Que azar, ter passado por aqui uma mulher simpática. Amorosa, mesmo. Mas agora deixe-me em paz, sim? Não tenho muito tempo para poder chorar, está a ver?
Não, ela não estava a ver. Queria ter a certeza de que podia ir embora descansada. Estava preocupada. Não era azar, era sorte. Eu estava cheia de sorte, era preciso reconhecer isso.
Tapei a cara com o cachecol e continuei a chorar. Agora estava comovida, já nem era a tristeza. Quem era aquela mulher, aquele anjo da guarda, e a que propósito é que tinha aparecido ali naquele momento, para me mostrar que não estou só, que há quem se preocupe, nem que seja uma pessoa estranha que por um incrível acaso (talvez os acasos não existam, de facto), passou por mim na hora exata em que eu precisava, apesar de não querer?
Não arredou pé. A certa altura, mostrou-me um distintivo. Seria agente da Polícia? Oh, meu Deus!
Voltou a bater no vidro. Era, afinal, uma autoridade... Teria eu de obedecer? Entretanto, o tempo estava a chegar ao fim. Eles iriam aparecer daí a uns minutos, talvez apenas segundos. Era preciso pôr fim àquela situação.
Abri a janela e disse-lhe que estava bem, que não se preocupasse, que tinha a família a chegar e que eu era uma pessoa com muita sorte. Agradeci-lhe e assegurei-a de que poderia ir embora descansada.
Ela sorriu. Era óbvio que eu não estava bem. Queria ajudar. Insistiu em dar-me o seu contacto, para eu lhe poder ligar, caso precisasse. Talvez tivesse pensado que eu era vítima de violência doméstica... Achei injusto retê-la ali, ter a sua atenção, quando eu tinha tanta sorte na vida, tantas pessoas a amarem-me, e havia tanta gente a precisar a sério de ajuda. Que equívoco tremendo! Eu não merecia... ela não merecia.
 Saí do carro quando os vi a aparecer, descendo a escada rolante. Segui-a até ao carro dela, que estava perto. Ela foi buscar um pequeno bloco de notas e uma caneta e escreveu o seu nome e número de telemóvel. «É o meu trabalho», disse-me, quando lhe agradeci. «Lido com pessoas assim todos os dias».
A solidariedade era, portanto, a sua profissão. E a sua vocação também, não tenho dúvidas.
Perguntei-lhe se tinha Facebook e prometi que, mais tarde, lhe enviaria uma mensagem, para que soubesse que eu estava bem. Paciente e amorosa, abriu o Facebook no telemóvel e mostrou-me o perfil dela, para que eu a reconhecesse.

Despedimo-nos quando eles já tinham voltado e entrado para o carro, depois de terem olhado com um ar curioso e vagamente preocupado para nós.
Quem era? - perguntaram-me, quando me sentei. «Uma ex-aluna minha», disse eu. «Quem diria! A Ana Luísa! Que giro voltar a encontrá-la, ao fim destes anos todos...!»






3 comentários:

Fernando disse...

Gostei muito

Domingos disse...

"Havia que libertar dores enclausuradas há demasiado tempo e abrir espaço para se manifestar uma frustração profunda e mal disfarçada no quotidiano." Sem comentários.

Dulce disse...

Mentirosa, tu. :) Beijinho, querida Sara.