sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Sentado no deserto*

- Pst, menina!

Olhei para trás. Era o senhor da cama ao lado da do meu avô, sentado numa cadeira entre a cama dele e os armários encostados à parede, com um tampo de madeira no colo. Tinha um ar de profundo desespero, por detrás de uns olhos azuis escuros implorantes. Falava em voz baixa para mim, que era a única visita naquele quarto com cinco doentes. Aproximei-me dele.

- Estou aqui entalado. Ajude-me!

Olhei para as suas mãos. Uma estava debaixo da tábua, a outra por cima, mas com o polegar por baixo. A tábula estava amarrada à cadeira. Levantei-a, mas percebi que não a podia tirar dali. Ele conseguiu pôr as duas mãos para cima e parecia estar numa posição relativamente confortável. Mas continuou:

- Tire-me isto. Eles matam-me aqui!

Percebi que não podia fazer-lhe a vontade. Fiquei sem saber o que fazer, porque ele insistia em que eu lhe tirasse o tampo do colo. Então disse-lhe que ia chamar alguém, pedir que viessem atendê-lo. Saí do quarto e procurei uma auxiliar, sabendo que estavam todas a almoçar, excepto uma, que não tinha mãos a medir, com tantas solicitações. Expliquei-lhe, mesmo assim, o que se estava a passar. Voltei ao quarto para continuar a dar de beber ao meu avô. Mas ele não desistia:

- Pst. Menina. Ajude-me... - O tom era resignado, de quem passa o dia a fazer o mesmo pedido, habituado a ser ignorado. Mas os olhos eram impossíveis de ignorar. Por isso, comecei a olhar para o vazio, através dele, enquanto lhe respondia:

- Já chamei a senhora, ela vem já, só tem de esperar um bocadinho.

E ele:

- Matam-me, aqui. Quando chegarem, estou morto.

Olhei para o cartão de identificação pendurado na parede, sobre a cama dele: "Manuel Santos. Idade: 92". Estaria senil? Seria perigoso, desataria a bater em tudo e todos, descontroladamente, se lhe tirassem a tábula da frente e o deixassem levantar-se? Ou seria um pobre velho inofensivo lucidamente desesperado por se ver obrigado a permanecer sentado?

Do outro lado há um idoso com os pulsos amarrados à cadeira, que se vai embora, se o deixarem. Já mora no hospital há sei lá quanto tempo. Nunca tem visitas.

Uma tristeza muito grande, aterradora, ameaça invadir tudo. Temos de olhar para a janela, sorrir levemente e dizer alguma coisa, apenas para afastar o medo do caos tremendo que é a lenta queda no abismo da solidão, da velhice e da morte. O fim do mundo à vista de todos, todos os dias.

Depois, podemos respirar de novo. Uma auxiliar entra no quarto e desdramatiza, protegida com a carapaça do hábito e da necessidade. Chega uma visita para o senhor Manuel, talvez o filho, a quem ele volta a pedir que o soltem. Sem pânico, com afecto, o homem explica ao velho que não pode ser. E tudo volta lentamente à tranquilidade possível, sem sobressaltos.
Porque é preciso.


*"Sentado no Deserto" é um conto de Luísa Costa Gomes. Impossível não me lembrar dele num dia como hoje. E, usando as suas palavras, eu diria: é "preciso ver e não ver" o velho, "e continuar."

1 comentário:

Vida de Praia disse...

Glup... eu não lido nada bem com este tipo de situações.