terça-feira, 5 de abril de 2011

Paixão literária

«Estou apaixonada... por Mia Couto» - declarei hoje, injustamente, ao meu marido.
«Devo ficar preocupado?» - foi a resposta dele.

Claro que não. Deve, quando muito, ler e apaixonar-se também. Este é um dos escritores que apetece obrigar toda a gente a conhecer. Mas não se pode. Correr-se-ia o risco de suscitar embirração, raiva, mesmo, só por causa da obrigação em si. Por isso, quando empresto livros dele aos meus alunos, peço: «se não gostarem, por favor, pousem, larguem. Não insistam. Porque se não, depois ainda vão andar a espalhar que é mau e isso seria uma terrível injustiça para com o livro e o autor.» E não acrescento: quem não gosta de ler Mia Couto não merece lê-lo. Mas vontade não me falta.

Da mente e da mão de Mia Couto tudo sai bonito e profundo. Não há crónica que não seja bela, singela, tocante pelas suas revelações simples e directas. Até uma mera nota preambular é cheia de sentimentos que comovem, através de palavras que, como dedos mágicos, se estendem da página para nos tocar o coração. Não há prosa que não seja transbordante de poesia. Não há duas linhas que não me façam sorrir de comoção e sonhar com asas subitamente nascidas do meu pensamento. A cada momento, vontade de me levantar do canto onde me sentei em silenciosa comunhão com o livro e, se não gritar à janela para que todos ouçam o que acabei de ler, pelo menos transcrever um parágrafo. Só me detém a ânsia de ler mais, de tragar as palavras como um alimento recém-descoberto de um sabor exótico irresistível. Mas hoje, antes de recomeçar a leitura, tenho de o fazer. Deixar aqui algumas palavras para quem queira colhê-las e deixar que a sua alma se alimente delas. Deixar-se vencer pela doçura terna do encanto deste aguarelista verbal. Tal como o próprio escritor sucumbe à beleza da paisagem natural e a oferece, através dos olhos e do espírito, à sua magnífica sensibilidade:

  «O meu companheiro de trabalho está meio enterrado na lama e vai zelosamente anotando pássaro por pássaro, nomes em latim. O seu caderninho de ornitólogo está todo manchado de lodo. Eu desisti de apontar. Desisti de fotografar. Desisti-me. Pouso a minha profissão, junto do caderno. Já não sou biólogo. Sou um visitador de plumas, sou a simples presa de voláteis encantamentos. E já não são as aves que me fascinam mas o simples esboçar de um voo. O pássaro é tanto mais belo quanto menos pode ser nosso.

Inhambane

  Quissico. A paisagem, de tão bela, chega a doer. Mora ali um espírito mais eficiente que o polícia de trânsito. E obriga-me a parar o carro, sair da viatura e contemplar o lugar.»

Mia Couto, "As Águas da Terra" (in Pensageiro Frequente)

4 comentários:

Dulce disse...

Eu gosto imenso de Mia Couto. O primeiro livro que li dele - Cronicando - marcou-me para sempre.

tikka masala disse...

Que bom! Já temos mais isso em comum ;)
Bj

Luís Alves de Fraga disse...

Como estive por duas vezes em Moçambique (noutro tempo, é certo) num total de mais de quatro anos, sou testemunha do encanto da terra e das personagens criadas por Mia Couto. Estas últimas tomam a forma de gente que conheci, gente simples do Povo que nos fala e olha de forma simples. Claro que as paisagens são inesquecíveis, esteja-se no mato, na savana, no planalto ou à beira-mar. É sempre a vida que nos brinda com prendas inesperadas... Podem ser cheiros, sons, silêncios ou grandes visões de vastos horizontes que nos despertam os sentidos e nos alertam a alma para valores desconhecidos.
Confesso, não sei se gosto mais da escrita de Mia Couto se da recordação que guardo de tudo o que conheci em Moçambique.

Fernando Vouga disse...

Também gosto do Mia Couto. Tal como Alves de Fraga, a minha passagem por Moçambique marcou-me pela positiva, "malgré la guerre"...
Achei um piadão em "A Varanda do Frangipani", uma espécie de romance policial ao contrário em que todos, em vez de se declararem inocentes, se afirmam culpados!
Aprecio muito o emprego do "pretuguês", chamemos-lhe assim, que me faz lembrar as falas daquelas gentes. Recordo-me, a título de exemplo, de uma carta que recebi em Angola em que um africano me agradeceu por eu ter "elasticado" a sua sanzala.
Simplesmente encantador!...