quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um mundo à parte

Já atrasados, com plena consciência de que se tratava de uma falha grave naquelas circunstâncias, parámos o carro no sinal, à espera de poder virar para a entrada da Academia Militar.
Dois polícias mandam-nos avançar, com o sinal ainda vermelho. Parece que sabem do nosso atraso e querem minimizar os danos...
Na cancela, explicamos que fomos convidados para a abertura solene do ano lectivo. Delicadamente, pedem-nos que aguardemos, por causa do "nosso general". Chegámos no momento em que a Guarda de Honra recebia Sua Ex.ª, o General Chefe do Estado Maior do Exército, que iria presidir à cerimónia. A banda tocava, solene, compenetrada, primeiro parada e depois marchando pelo pátio.
Finalmente dão-nos autorização para avançarmos, depois de nos explicarem o caminho a seguir. Estacionado o carro, vagueamos pelas ruas entre os diversos edifícios, procurando o movimento de pessoas, mas está tudo deserto e em silêncio. Há um certo ar de abandono nos terrenos de ervas altas e nos edifícios descolorados, acusando falta de manutenção e talvez mesmo falta de uso.
Inevitalvemente, uso o telemóvel para saber aonde nos devemos dirigir. Quando chegamos ao edifício onde irá decorrer a cerimónia, somos recebidos por jovens impecavelmente fardados, que nos oferecem um programa e uma planta do anfiteatro com os nossos lugares marcados. Seguimos o movimento da pequena multidão, expectante, mas ordeira, em direcção às escadas. Na sala, já há muita gente sentada: convidados, professores, cadetes e muitos militares dos mais diversos postos, imagino eu, sem perceber nada da hierarquia que ali estava misturada, em contido ambiente de festa. Caras sorridentes, orgulhosas, tranquilas.
Abrem-se duas portas laterais, junto ao palco, e os convidados "VIP" sentam-se ordeiramente, militares e civis igualmente preparados para aquele momento, como se tivessem ensaiado a sua entrada na sala vezes sem conta, para que não falhasse nada.
Após uma breve actuação do Cortejo Académico, a cerimónia começa com uma alocução do Tenente-Geral Comandante da Academia Militar, abundante, quase prolixa, em agradecimentos e explicações sobre o ensino na Academia Militar. Surpresa minha, ao perceber como aquele mundo, que me parecia tão fechado, tão à parte, se expande e articula com universidades de Portugal e do estrangeiro, num intercâmbio de alunos e de saberes, que tudo indica ser extremamente organizado e profícuo.
Finalmente, o discurso acaba e o meu pai surge no palco. Sinto um orgulho imenso por aquele homem baixo, discreto, um mero civil no meio dos distintos militares, mas que há tantos anos ensina os cadetes na Academia. A sua "lição inaugural" é brilhante, apesar das falhas do microfone: "Reservas energéticas: mitos e realidades".
Palmas, muitas palmas, com entusiasmo. Segue-se a entrega das Cartas de Curso e, finalmente, dos Prémios Escolares aos melhores alunos. Os tenentes, cadetes e alferes vão ao palco, oito de cada vez, receber os diplomas e os prémios das mãos dos oito militares que estão na mesa, representando o Conselho Académico da Academia. São homens e mulheres de sonhos realizados e brilho nos olhos, que marcham de volta aos seus lugares com um sorriso indisfarçado, apesar do formalismo da ocasião. Alguns voltam duas ou três vezes, porque lhes foram atribuídos vários prémios, pelo seu mérito enquanto estudantes. Palmas e mais palmas.
No fim, e pela primeira vez na vida, ouvi cantar o hino nacional. Um canto tão perfeito, tão harmonioso, tão adequado àquela partilha solene, em que a pompa e a circunstância não eram frias, mas temperadas pela sensibilidade e pela fraternidade, que percebi por que razão tanta gente se comove até às lágrimas nestas circunstâncias.
Finda a cerimónia, houve direito a um porto de honra, como não podia deixar de ser. O formalismo manteve-se, sob a forma de cortesia cerimoniosa entre os presentes, mas foi sempre caloroso.
E fiquei com uma excelente impressão da Academia, onde nunca tinha entrado.

2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado, Sara por este belo texto.
É tão real e vivo que, ao lê-lo, me senti impecavelmente fardado de cinzento no meio dos meus camaradas cadetes. Com a mesma juventude, com as mesmas esperanças, com as memas ilusões.
Afinal, ainda só se passaram, precisamente,... cinquenta anos!

Anónimo disse...

Leio e releio este texto e não resisto a comentar de novo.
Como disse, foi há cinquenta anos que assisti à primeira abertura do ano lectivo na AM. Naquele tempo ainda se chamava Escola do Exército.
Não participei na formatura da guarda de honra porque era ainda "infra" — assim se chamam os caloiros na AM —, apenas com um mês de vida militar. Mas assisti à pomposa cerimónia que decorreu no ginásio de Gomes Freire. Na presença do Presidente Américo Thomás (não se pode ter tudo...), ouvi o Hino Nacional tocado pela banda da GNR em traje de gala. Se a memória não me falha, a oração de sapiência foi pronunciada pelo decano dos catedráticos e falava de mísseis balísticos...
Por fim, o almoço de cerimónia servido em louça de Vista Alegre, copos de cristal e talheres Christofle. E a comida a condizer.
Nesse tempo ainda havia dinheiro para tais requintes e nem sequer se falava de portos de honra.