O senhor Flávio ia finalmente sair do hospital, ao fim de quase quatro meses de permanência quase vegetativa. Passava os dias amarrado à cadeira, porque tentava fugir sempre que o soltavam. De língua de fora e olhar ausente, estava ali, mas era quase como se não estivesse. Comia sozinho, mas falava pouco e por monossílabos.
As auxiliares e as enfermeiras falavam-lhe alto, mas com carinho e paciência:
- Porte-se bem, que vai-se embora hoje! Já vem um carro para o levar.
Já estava vestido, todo janota, finalmente livre do pijama deslavado do "Grupo Hospitalar de Lisboa Ocidental". Sorria, enquanto elas tiravam fotografias com ele, para recordação.
Ouvi dizer que, em casa, só tinha uma mulher em estado ainda pior do que ele. Para onde iria? Viver com algum familiar?
- Onde é que vai?! Volte já para aqui! Ai, ai... assim vou ter que o prender outra vez! Então está quase a ir embora e ainda quer fugir?
Sempre que o sentavam, ele levantava-se quase de imediato e marchava, a passo lento mas seguro, para fora do quarto. Fez isto umas cinco vezes, até que o prenderam à cadeira. De vez em quando, falavam com ele, para o animar:
- Diga lá, sabe para onde é que vai hoje?
- Casa! - dizia ele, visivelmente contente.
- Isso mesmo, para casa!
Faziam-lhe festas na cara e ajeitavam-lhe a camisola.
- Ponha lá a língua para dentro! Feche lá a boca. Não consegue? - E riam-se, porque naquela expressão alheada e perdida, ele tornava-se tragicamente cómico.
Quando chegaram os bombeiros, segredaram:
- Pensa que vai para casa, coitado.
- Então? Vai para um lar?
- Sim. Não tem outra hipótese...
- Quando lá chegar vai ficar todo chateado!
- Talvez não, vai ter muita gente, distrai-se...
Um dos bombeiros olhava para ele e dizia:
- Já viram, como nós vamos ficar quando formos velhos?
- É verdade... - disse uma delas.
- Credo! Nem quero pensar - rematou outra.
Nem podemos pensar, digo eu. Porque, se o fizermos, entramos em pânico.
1 comentário:
Como concordo contigo! Nem podemos pensar nisso.
Enviar um comentário