Quando me convidaram a falar sobre o romance de Fernando Vouga, foi isto que eu disse, mais coisa menos coisa (porque não gosto de ler e por isso tinha guardado a folha onde imprimi o texto):
Começo por agradecer o convite que me foi feito e o voto de confiança que ele implica, pois não sou, de todo, uma “personalidade” a par das que aqui têm vindo... Na verdade, se não soubesse claramente por que razão aqui estou, sentir-me-ia como se alguém se tivesse enganado ao convidar-me para estar deste lado da mesa, e até neste encontro. Assumo, portanto, desde já o desconforto de não me sentir à altura da situação e peço desculpa pela minha ignorância em assuntos militares, bélicos e políticos.
Porém, tive a oportunidade de vir assistir ao encontro anterior, no dia 16 de Março, em que foi apresentado o livro Combater em Moçambique, do Coronel Manuel Bernardo, e tive o gosto de rever e ouvir o Prof. Doutor Artur Anselmo – que curiosamente também foi meu professor há vinte anos (e nisto sinto que tenho algo em comum com alguns dos ilustres senhores aqui presentes!). A certa altura, o Professor lamentou que os seus jovens alunos não saibam nada sobre esta guerra, sobre o «mundo impenetrável» de que se tem falado nestes colóquios. E eu identifiquei-me com esse grupo de “ignorantes” sobre esse período da nossa história, essas gerações que surgiram a partir dos anos 70. Eu ainda podia ter nascido em África, podia ser filha de um combatente e ter vivido de perto a realidade da guerra, enquanto criança, mas não foi assim (e ainda bem). E como nasci em 71, quando tinha idade para escutar e aprender, não me lembro de alguma vez se ter falado da guerra lá em casa. Aliás, depois de ter começado a perceber que alguns dos meus amigos tinham nascido nesse misterioso continente, porque os pais estavam na guerra nessa altura, comecei a estranhei que a minha situação tivesse sido diferente. Afinal, os amigos dos meus pais tinham-se conhecido lá. Só nós é que éramos diferentes... então, resolvi perguntar um dia: «ó mãe, porque é que eu não nasci em África, porque é o pai não foi para aquela guerra que houve lá?». E explicaram-me que o meu pai trabalhava, na época, na Junta de Energia Nuclear e que o seu trabalho era importante e por isso não o tinham enviado para a guerra. Nunca mais fiz perguntas e o que fui sabendo mais tarde foi muito pouco. Posso estar enganada, mas sempre senti que era um assunto delicado, controverso, muito “fresco” ainda, e sobre o qual quem viveu a guerra não gostava de falar ou falava de forma demasiado envolvida. Não é certamente por acaso que neste ciclo de colóquios se convida a uma reflexão «o mais serena possível»...
Portanto, parece-me importante, como defendeu o Prof. A.A., que as pessoas que possuem experiência e informação, ou pelo menos uma visão sobre a guerra em África, e estejam dispostas a isso se esforcem por divulgá-la, para que não caia no esquecimento, por ignorância, a história de um conflito importantíssimo para a história do nosso país, que o romance de Fernando Vouga ajuda a lembrar, a questionar, a problematizar.
Curiosamente, há poucos anos, sem que eu pudesse prever ou imaginar, conheci o autor em circunstâncias que se poderão classificar como caricatas, embora cada vez seja mais frequente esse tipo de relação interpessoal: através da Internet. Após elogios mútuos a propósito de textos que ambos publicávamos nos nossos blogues, e depois de eu ter demonstrado muito interesse em ler os de Fernando Vouga (estava eu longe de o saber um Coronel reformado), eis que recebo em casa, via CTT, os Caminhos Perdidos na Madrugada. Li-o com entusiasmo e curiosidade e, confesso, foi a primeira vez que me senti informada sobre a guerra colonial. Aquilo que vim a ler mais tarde, já com a vontade consciente de saber mais sobre o assunto, por exemplo o livro A Força Aérea na Guerra em África, do Coronel Luís Alves de Fraga, veio confirmar o que o livro de Fernando Vouga já deixara explícito, ainda que pela boca de personagens ficcionais.
De facto, e como o autor deixou bem claro, trata-se de um romance, e não de testemunhos, de uma obra documental. Mas, por um lado, nem os testemunhos ou os textos documentais estão isentos de subjectividade e parcialidade (a verdade sobre a guerra resume-se à experiência de cada um), nem a literatura dita de ficção, como se sabe, tem sido parca em textos que dizem grandes verdades – muitas vezes verdades que não podem ser ditas de outra maneira. Em todo o caso, parece-me que o fundamental não é propriamente a veracidade das afirmações e das ideias que no romance se expressam, mas o facto de funcionarem como ponto de partida para a investigação e a reflexão.
Em todo o caso, nesta edição revista e aumentada, o texto (e o leitor) ficou a ganhar em muito nesse sentido, porque os novos capítulos trazem muito mais “miolo” no que respeita à forma como a temática da guerra é desenvolvida e problematizada, acrescentando-se por exemplo pormenores sobre a instrução dos militares antes do seu envolvimento no conflito armado, incluindo episódios caricatos, alguns cómicos, porventura inspirados na realidade. Não resisto, neste sentido, a citar uma passagem do 2.º capítulo, em que uma personagem, o capitão Álvaro dos Santos, na altura cadete, relembra a visita do pai, num domingo à tarde, quando se encontrava no Destacamento da Amadora da Academia Militar:
Passada quase uma hora, o jovem cadete olhou para o relógio e interrompeu a conversa.
— Pai, tenho que me ir embora.
O pai respondeu-lhe como se tivesse acabado de acordar.
— Já?
— É que tenho que vestir o uniforme número um para o jantar.
— Estás a falar daquele uniforme de fazenda com botões amarelos? Com este calor todo?
— Ao jantar é obrigatório, quer chova, quer faça sol.
Acompanhou o pai até à porta de armas, que ficava a uns trinta metros da sala de visitas. De regresso, deu de caras com o oficial-de-dia, que o olhou com um ar carrancudo.
— Senhor aluno! Tchhhh! Uma hora com um civil na sala de visitas! O senhor aluno ou é parvo ou é paneleiro.
A surpresa foi tal que nem reagiu. Como todos os outros cadetes, já estava habituado aos desmandos, disparatados e grosseiros, daquele oficial. Apesar de os demais oficiais serem em regra mais moderados, era inegável que se pretendia incutir nos futuros oficiais do exército um espírito de casta, uma mentalidade militarista, para os convencer de que ser militar era superior a ser civil. Porque, afirmava-se com frequência, ser civil equivalia a ser efeminado, ou pior… [...]
Não era de estranhar a orientação militarista da Academia, dada a personalidade do Comandante do destacamento, um tenente-coronel de artilharia, solteirão e profusamente condecorado. De tal maneira, que não lhe cabiam no peito todas as medalhas. Quando se apresentava em cerimónias militares, exibia o peito constelado de condecorações, das quais se salientava o Grande Colar da Torre e Espada, ganho na Guerra Civil de Espanha, ao lado das tropas de Franco. Tinha o dom da palavra. Os seus discursos eram inflamados e patrióticos, e, no fundo, davam a entender que o patriotismo era propriedade exclusiva dos militares de carreira. Em tom profundo e pausado, medindo o efeito de cada palavra, o comandante exortava com frequência à “vertigem do sacrifício” como qualidade última a atingir.
Penso que este excerto é elucidativo, por um lado, da escrita limpa, directa e versátil, em que cada personagem (e são todas intrigantes) cativa o leitor e o desafia a descobrir os seus segredos; e por outro lado da forma como, sem rodeios, o autor expõe pontos de vista e põe o dedo em várias feridas, não permitindo que fiquemos indiferentes ao que é dito e sugerido. Nesse sentido, permitam-me que demonstre como uma das ideias que ficam em suspenso na passagem que li anteriormente encontra eco mais à frente. no capítulo IV:
Por fim, os dias de autêntico cativeiro no campo militar estavam a chegar ao seu termo. A ansiedade era grande. Os alunos, especialmente aqueles que não tinham exames de segunda época, iriam ter, finalmente, uns dias de férias como qualquer estudante. Porém, estava ainda reservada mais uma surpresa: a visita do Ministro da Defesa que, por sinal, tinha um filho no primeiro ano. Chegou em toda a glória num “Dakota” da Força aérea. Visitou o que muito bem entendeu, estava no seu direito, mas, antes de tomar o avião, ordenou ao general comandante que mandasse o filho entrar no avião para seguir com ele para casa, a fim de passar férias com a família. E foi aí que ficou bem claro que a tão propalada “vertigem do sacrifício”, afinal, não era para todos.
Ora, tendo em conta o objectivo destes encontros, que é promover o debate sobre o período do Fim do Império – julgo que o romance Caminhos Perdidos na Madrugada constitui uma referência incontornável, tanto para leigos, como eu, que através da sua leitura podem perceber muito do que esteve em causa naquele período tão conturbado da vida nacional e da história de antigas colónias, como Moçambique, mas também, provavelmente, para quem viveu essa experiência e deseja repensá-la.
Porque este romance, ao que me parece, toca os pontos fulcrais do assunto da guerra e da descolonização: a estratégia e os interesses do Governo português, as críticas que lhe foram feitas na época, nomeadamente pelo general Spínola, a tensão entre sentimento e atitude por parte dos militares que cumpriam o seu dever no terreno, mesmo sabendo que a solução da guerra não estava nas suas mãos, o problema dos colonos cuja situação era obviamente precária e os levava a viver em permanente receio e desconfiança, enfim, quem se interesse pelo tema e queira pensar no assunto, encontra na leitura e na releitura deste romance um não acabar de sugestões. Com a mais-valia de descobrir nele um escritor cheio de qualidades, que nos prende facilmente e nos deixa apenas a insatisfação de não ter mais que ler, quando chegamos à última linha.
2 comentários:
Excelente apresentação. Feliz o autor e parabéns à apresentadora.
Obrigado por este seu belo texto; obrigado por ter participado no lançamento do meu livro; obrigado por ter escrito o prefácio.
Tomei a libertade de fazer um "cut and paste" para o processo do livro.
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